Carminha Maria Gatto Missio Copy
Carminha Maria Gatto Missio Copy

Carminha Maria Gatto Missio Copy

16.07.1956

(Espumoso, Rio Grande do Sul)

“Toda atividade, seja ela inerente a homem ou à mulher, não tenha medo, é possível”

Figura 1. Carminha 15 anos

Não é incomum ouvir jovens com menos de 30 anos manifestarem arrependimento por não terem realizado atividades que passaram a julgar importantes, como o aprendizado de um instrumento ou de uma língua estrangeira ou, até mesmo, uma formação diferente da escolhida. A história dessa gaúcha de Espumoso é um exemplo vivo de que jamais será tarde o suficiente para que nos redescubramos e desenvolvamos novas competências. Nos 65 anos vividos até aqui, Carminha Missio mostrou-se à altura do roqueiro baiano Raul Seixas, sempre se reinventando e assumindo com gosto o papel de metamorfose ambulante.

A INFÂNCIA NO RIO GRANDE DO SUL. Nascida no interior do município de Espumoso no Rio Grande do Sul, Carminha Gatto foi criada pelos pais, descendentes de imigrantes italianos, com mais nove irmãos. Entre os filhos, seis homens e quatro mulheres, Carminha foi a quarta. Nas décadas de 1950 e 1960, período da sua infância, a única opção de ensino era a escola rural da comunidade em que a família residia. Na vila do Arroio da Prata, havia uma igreja, um pavilhão para encontros da comunidade e uma escola. Nesse local, uma professora lecionava ao mesmo tempo para várias classes em uma única sala de aula. Carminha labutou muito para cursar o fundamental, enfrentando, juntamente com os irmãos, quatro quilômetros diários de deslocamento a pé para estudar, tanto no inverno severo do Sul, quanto no sol a pino do verão. Além disso, pertencendo a uma família numerosa, de pouca posse e dependente do trabalho com a terra, era quase impossível aos filhos fugirem da condição de mão de obra.

A casa em que cresceu, entretanto, era simples, aconchegante e cheia de vida, como tipicamente eram as moradas dos denominados “colonos na região”. Ali se produzia quase tudo o que era de consumo da família. Até mesmo a construção das casas, comumente de madeira de pinheiro, era feita pelos homens que se uniam com poucos equipamentos para desde o derrubamento das árvores, passando pela fabricação das tábuas e finalizando com o erguimento das paredes. As paredes cor de rosa e azul e do chão sempre muito limpo e encerado da grande casa de madeira que abrigava os Gatto jamais saíram da memória de Carminha. Havia amplos cômodos, cozinha com fogão a lenha, lavel – um tanque grande com água corrente – e um porão onde se guardavam os alimentos produzidos no ano, como carne de porco enlatada na gordura, salames e outros embutidos, o vinho fresco, além de algumas frutas da estação. Todos os irmãos, às vezes, com a companhia de vizinhos e primos, se ajudavam nas atividades como carnear os animais, colher o trigo, fazer farinha, pão e bolacha. Os preparos eram aprendidos quase naturalmente, acompanhando os adultos e os mais velhos em suas ocupações. Por ser a primeira menina e única, por anos, entre cinco irmãos, Carminha se acostumou, desde muito cedo, até se casar e mudar de casa, a fazer tanto o serviço da roça, quanto o doméstico. Sempre que era preciso, ela capinava, ou colhia o trigo com foicinha, alimentava os porcos, tirava leite, fazia nata, queijo, geleias, além de costurar muito bem, atividade ensinada por sua mãe, que confeccionava calças, camisas e vestidos como poucas pessoas da região. Desse modo, as suas atividades do curso fundamental estiveram sempre concorrendo com as atividades e demandas domésticas e da lavoura. Ir além do primeiro ciclo de ensino, para as crianças e adolescentes da região, era incomum. Sendo assim, após concluir o curso primário, interrompeu os estudos regulares e realizou um curso de gestão familiar, desenvolvendo as primeiras noções de gestão da produção.

AS PRIMEIRAS FORMAÇÕES NA ÁREA DE LIDERANÇA. Na adolescência, a necessidade de trabalhar mostrou-se ainda mais imperativa. Carminha procurava se capacitar a partir de oportunidades fora do ensino regular. A Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural (Emater), instituição criada na década de 1960 para apoiar a geração de renda para os agricultores e a melhoria na gestão das propriedades, ofertava cursos que preparavam jovens para a produção rural. Carminha agarrou-se a essa oportunidade de oferta de conteúdo, frequentando palestras, reuniões e obtendo acesso a materiais de leitura e pôde, assim, se desenvolver, incorporando à sua vida os quatro Ss que determinavam os princípios da instituição: Saber, Sentir, Saúde e Servir. Complementarmente, recebia formação do Sindicato de Trabalhadores Rurais, na área de desenvolvimento de lideranças, que tinha objetivo de formar as meninas da região para atuarem como chefes de família. Ainda que a função de liderança sindical só viesse a ser exercida algumas décadas depois, as duas atividades somaram insumos importantes para a líder que viria a se tornar.

Figura 2. Carminha e Celito; Lavoura de Soja, 2021

A PAIXÃO. A beleza de Carminha Gatto na juventude era notável, o que a levou a receber os títulos de rainha local e regional em concursos de beleza, respectivamente, da sua cidade e da sua região. O encanto de Carminha não passou despercebido, em especial, por um jovem que lhe era próximo. Celito Missio, no entanto, era seu primo de segundo grau e muitos viam obstáculos, apesar do parentesco não muito próximo, no estabelecimento de laços consanguíneos entre os jovens. Como a paixão se apresentava maior que os empecilhos, foi natural ver o namoro superar as adversidades e vingar, seguindo-se, posteriormente, o casamento. A união de Carminha e Celito, formado em agronomia, e a trajetória de vida que passaram a compartilhar, seria fundamental para o surgimento posterior da profissional e líder sindical que viria a ser. Em 1980, com o primeiro filho, Giovani, recém-nascido, o casal se mudou para Rondonópolis, no Mato Grosso. Nos quatro anos seguintes, vieram duas filhas, Elisa, nascida em 1981, e Daniela, em 1984. Essa nova realidade fez com que Carminha, nos anos seguintes, assumisse e exercesse, mais que todos os outros papéis, o de mãe.

MATERNIDADE E PROJETOS SOCIAIS. Enquanto os filhos cresciam, as demandas de trabalho de Celito o distanciavam, durante períodos longos, de casa. Sendo assim, a maternidade passou a ser protagonista na vida de Carminha, agora Carminha Missio, tornando-se, ao mesmo tempo, um gancho importante para o seu engajamento em projetos sociais

Figura 3. Carminha e filhos, 2021

A carreira profissional do marido fez com que a família fixasse residência na cidade de Ponta Porã (MS), no ano de 1988. Ali, ao buscar para os filhos os valores do escotismo, chegou a se tornar chefe local dos escoteiros. A característica de preocupação com a coletividade, e não somente com os seus, levou Carminha Missio a assumir a posição de diretora da Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (APAE), chegando posteriormente à presidência, função assumida por muitos anos. Os projetos de voluntariado no Rotary e no American Field Service (AFS) também foram abraçados por Carminha. Envolvida nos programas internacionais de intercâmbio de jovens, chegou a receber dez estudantes de diferentes países na sua casa. Esse contato foi muito importante para a expansão de visão do mundo dos filhos, ampliada com as próprias experiências que teriam de intercâmbio internacional. 

Cada uma das experiências de vida, acumuladas pela participação e posição de liderança nos projetos sociais, contribuiu para reforçar em Carminha a importância da capacitação e da educação, bem como a habilidade de gerir pessoas. O embrião da futura líder sindical continuava a ser forjado.

NUNCA É TARDE. Além das atividades sociais, Carminha Missio, enquanto acompanhava e impulsionava o crescimento dos filhos, engajava-se nas mais diversas atividades como empreendedora para auxiliar na receita da família. Como artista plástica, pintava quadros em óleo sobre tela e organizava eventos com artistas do Brasil e do Paraguai. Se destacava pelo estilo próprio, denominado pelos curadores de arte de primitivo e ingênuo. Foi premiada no terceiro salão de artes de Dourados (MS) com o primeiro lugar. Uniu suas habilidades como costureira e artista para produzir lençóis pintados por si própria. Os dotes culinários lhe serviram para a produção artesanal de pães e biscoitos. Mostrou-se, ainda nesse período, capaz de expressar as suas emoções e sentimentos em palavras, produzindo poesias que a levaram a ocupar uma cadeira na Academia de Ponta Porã de Letras.

No entanto, à medida que os filhos cresciam e ganhavam mais independência, sentia a necessidade de incorporar novas atividades que ocupassem o vazio deixado. Foi assim que, quando os filhos começaram a prestar o vestibular, decidiu fazer o supletivo, obtendo o diploma do segundo grau. Concluída essa etapa, matriculou-se e foi aprovada no vestibular para cursar Direito. O interesse pela leitura e a disposição permanente para aprender fizeram a diferença para o sucesso na empreitada. Tendo iniciado mais tardiamente o curso superior, tinha os amigos dos filhos como colegas. Ao se formar, mesmo sem chegar a atuar como advogada, concluiu uma especialização em Direito do Trabalho.

Figura 4. Carminha no grupo escoteiro em ponta pora-MS

O CHAMADO DO OESTE BAIANO. Os dez filhos de Amelio e Holalia, especialmente os seis homens, sempre exerceram com muita maestria a atividade rural. Desde o início dos anos 1980, os irmãos de Carminha tinham o sonho de desenvolver um próspero negócio na área agrícola e não hesitaram quando encontraram uma oportunidade de se estabelecerem na Bahia. 

De olho na abertura da fronteira do agronegócio no oeste baiano, depois de alguns anos de muito trabalho no Mato Grosso, Celito e Carminha somaram suas economias para também comprarem terras na promissora, e ainda acessível, nova fronteira agrícola. Ainda que Celito continuasse o seu trabalho em uma empresa sul mato-grossense, passou a acompanhar de perto o desenvolvimento da agricultura na Bahia. Foi no final dos anos 1990 que o casal fez sociedade em uma empreitada junto com o grupo agrícola formado pelos irmãos homens de Carminha. Foi criada uma nova empresa de sementes a partir da embrionária e bem organizada instalação dos irmãos Gatto, impulsionada, a partir de então, pela convicção visionária de Carminha e pela grande experiência e entusiasmo de Celito.

A CRIAÇÃO DA SEMENTES OILEMA. Ainda que a maior expressividade de Carminha esteja claramente vinculada à sua atuação como liderança sindical, não é possível contar a sua história sem que se estabeleça a devida importância desse negócio familiar que envolve seu marido e núcleo familiar (o Condomínio Santa Carmem) e o grupo empresarial de seus irmãos (Irmãos Gatto Agro). Para melhor compreensão do contexto vigente no momento da criação da sementes Oilema, é importante situar que as sementes de soja, até 1997, não eram protegidas por lei. No entanto, o novo marco legal, estabelecido ainda naquele ano, determinou que novas modalidades desenvolvidas a partir de pesquisas só poderiam ser multiplicadas por agricultores inscritos no Ministério da Agricultura. que tudo, levar os liderados a essa compreensão.